O blog dessa semana é assinado pela atriz, musicista e educadora Grasiela Müller, que tem como pesquisa a criação artística através das linguagens animadas cênicas e sonoras e a construção de bonecos a partir do lixo. Atualmente morando em Portugal ela nos conta um pouco da construção da trilha sonora do espetáculo As Troianas, trabalho que vem desenvolvendo ao lado do diretor Rui Madeira e da CTB - Companhia de Teatro de Braga, antes e depois dos efeitos da pandemia. Ela nos conta também como foi o início do seu trabalho com formas animadas e de como segue expressando sua arte através do #FestivalVarandas onde diversos artistas tem registrado momentos de extrema poesia e emoção. Grasi também fala da experiência de fazer o musical infantil As Aventuras do Menino Iogue, que lhe rendeu o Prêmio CBTIJ de Teatro para Crianças e Jovens de Melhor Atriz Coadjuvante em 2015.
Grasiela Müller @criafosforo
Atriz, musicista e arte educadora. CTB - Companhia de Teatro de Braga
“ Na arte, para cada criação que chega, gerúndios reverberam nas nossas vidas. A clássica pergunta, não vai por que? Estou ensaiando, estou pintando, estou criando. Esses gerúndios que seguem tecendo nosso ofício.”
Sempre gostei dos gerúndios, dessa forma verbal que expressa a ideia de continuidade nas ações, desse tempo que segue sendo, segue até aparecer um fim, ou podemos dizer, o começo de um outro ciclo. Escolhi esse tempo para ilustrar esse pequeno texto memória, que aconteceu em um tempo específico, mas continua presente em fragmentos nos tempos, nas memórias e no corpo.
Na arte, para cada criação que chega, gerúndios reverberam nas nossas vidas. A clássica pergunta, não vai por que? Estou ensaiando, estou pintando, estou criando. Esses gerúndios que seguem tecendo nosso ofício. Sem julgar aqui as dualidades bem e mal, pois ambas nos ensinam e nos revestem de conteúdos e vivências. Assim posso dizer que é a arte para mim, um encontro de gerúndios que viajam junto na minha mala, tal como meus bonecos e minha sanfona.
Reencontrar Arlindo Lopes na peça As Aventuras do Menino Iogue, fez da nossa amizade um gerúndio. Fez nossas velhas imaginárias Marlene e Holanda se divertirem, ou melhor, se divertindo. Uma brincadeira que acompanhavam as caminhadas pós ensaios e hoje, segue pelas mensagens, ele Brasil, eu Portugal. "Ô Marlene, satisfação!". Arlindo nunca está só, sempre está bem acompanhado nas suas criações. Ele tem o colorido nas ideias, uma máquina de fumaça e outra de bolhas de sabão, risos. Ele tem equipe, pessoas talentosas para apresentar e trazer para perto. Foi assim no Menino Iogue: Juliana Terra, Antônio Tigre, Carol Chediak, Orlando Caldeira, Luciana Bollina, Arvind, Guilherme Cavalcanti e Guilherme Alves, Wilson Jequitibá e toda uma equipe de criação incrível que, mesmo com a falta de verba para colocarmos de pé a obra, todos se mantiveram firmes e criativos, pois bons gerúndios se encontravam ai.
Grasiela Müller e o elenco no ensaio fotográfico para o espetáculo As Aventuras do Menino Iogue. Fotos de Carol Chediak @estudiocarolchediak
Falar de Menino Iogue é falar da prática do yoga. Deitar no tapetinho, respirar no adho mukha e sentir a musculatura do peito se expandindo. Essa se tornou, para mim, um belo gerúndio de conexão com o que me conecta com a vida, o corpo.
A peça tem gerúndios e também tem passado. Um passado repleto de acontecimentos com o verbo gratidão. Encontros, amizade, teatros lotados, viagens e prêmios. Crianças conhecendo a yoga e cantando o mantra Ommm. Pessoas praticando e respirando, recebendo esse gerúndio ancestral. Permaneço agradecida.
Grasiela Müller e Orlando Caldeira vencem as categorias de Melhor Atriz Coadjuvante e Melhor Ator Coadjuvante do Prêmio CBTIJ de Teatro para Crianças e Jovens em 2015.
Formas Animadas
Dei as mãos para as Artes Animadas desde a minha primeira experiência com o teatro. Eu tinha 16 anos e junto com o Grupo Hora Vaga, da minha cidade natal Garibaldi- RS, comecei a pesquisar a portagem de máscaras, manipulação de objetos e imagens feitas através do corpo para usar no teatro de rua.
Com 20 anos me encontro com a menor máscara de todas, o nariz vermelho. Com ela fui atuar em hospitais, espetáculos e criei experimentações sobre a mulher na palhaçaria.
Da esquerda para a direita fotos de Douglas Trancoso e Giovana Mazzochi para a peça Cinta-liga/Desliga no Rio Grande do Sul. Grasiela Müller em cena com a performance musical Baile de Ofélia e por último se preparando para a apresentação no Festival Internacional de Palhaços Ri Catarina.
Em 2014, na cidade do Rio de Janeiro, encontro Lucia Coelho e todo o seu trabalho com bonecos, educação e formas animadas. A partir daí, começo perceber o teatro e me perceber no teatro de uma forma diferente. O teatro de formas animadas me desdobrou para novas composições corporais, de interpretações, de música e da própria confecção das peças e dos bonecos. Um novo olhar pousou em mim e por ai ficou. Uma vida na forma e uma forma de vida.
Lucia Coelho - Sempre Navegando é um curta documentário sobre a vida e obra da diretora de teatro Lucia Coelho com direção de Ricardo Brito que pode ser assistido no Porta Curtas. Lucia foi professora de diversos importantes artistas do cinema, do teatro e da televisão, incluindo Grasiela Müller, que a convite de Tim Rescala participa da trilha da película. O filme através das palavras da própria Lucia nos mostra sua filosofia inusitada de trabalho, onde prevaleciam a liberdade e o prazer.
Eu queria fazer poesia cênica, mas queria também que essa poesia pudesse estar ao lado de uma causa, de um discurso que fosse útil e necessário para as pessoas. Depois de procurar, pensar, fazer, cheguei no lixo. E isso não é ruim como a idéia que temos do lixo, foi daí mesmo, nos descartados que encontrei a materialidade para as minhas criações e as inspirações para as minhas pirações.
Entre criaturas criadas, feitas e brincadas, eis que surge uma galinha. Uma ave feita com mais de 400 sacolas de supermercado e um guarda Sol. Com ela criei um pequeno número e me apresentava em eventos e festivais.
Fotos do espetáculo Elas se Viram projeto escolhido pelo o Iberescena 2017-2018, que foi idealizado e protagonizado por Grasiela Müller. Fotos de Wilson Neto
Surge a mudança de pais e toda a seleção de coisas que poderia estar na mala comigo. Muitas coisas eu queria que continuassem me acompanhando, muitos instrumentos, figurinos, bonecos, livros, discos e toda uma vida de memórias através dos objetos que ganhamos, criamos e adquirimos. Entre todas essas coisas, uma delas eu tinha certeza que ia me acompanhar, a galinha. É claro que foi a que mais ocupou espaço na mala, risos, mas sabia que com ela eu iria viver boas aventuras pela Europa.
Hoje continuamos juntas. Passamos por ruas, por cidades e também por eventos online como o #FestivalVarandas e atualmente estamos em processo de transformação, estamos nos tornando um espetáculo. Seguimos juntas, aprendendo a nos encontrar, a encontrar formas e construir uma história.
A atriz e musicista Grasiela Müller em diversas performances do #FestivalVarandas:
Companhia de Teatro de Braga (CTB)
Cheguei em Braga/ Portugal em novembro de 2019, após passar 2 meses na Itália em um processo de cidadania Italiana. Escolhi Portugal por ter pessoas queridas por perto e para entender na prática o cenário artístico da Europa.
Procurei pessoas e companhias de teatro para conversar e trocar experiências artísticas. Depois de e-mails, conversas com algumas Companhias e artistas, Rui Madeira, diretor e fundador da Companhia de Teatro de Braga (CTB) me convidou para colaborar com alguns projetos que estavam sendo criados pela Companhia. Um novo gerúndio chegou na minha vida.
Em 2020 comecei a acompanhar os ensaios da peça As Troianas de Eurípedes e me envolver nas possibilidades de criações que eu poderia oferecer. Uma dessas possibilidades era a parte musical da peça. Criar paisagens sonoras onde os atores e o coro cênico pudessem fazer e também temas musicais onde eu executaria no acordeon. Um outro recurso que surgiu era o da pirofagia. Uma das atrizes teria que usar o fogo, desde cuspir até manipula-lo. Como tinha essa experiência na minha bagagem, consegui colaborar com mais uma possibilidade.
Comecei a freqüentar os ensaios em janeiro e a estréia estava prevista para ser em março.
Ensaios da CTB - Comapnhia de Teatro de Braga para o espetáculo As Troianas, antes da pandemia.
O elenco estava escalado com mais de 30 pessoas em cena. Artistas da própria companhia, artistas convidados como eu e minha colega de cena da Turquia e um coro composta de mulheres e homens da Comunidade de Braga, pessoas que participam de oficinas de leitura de obras cênicas que a Companhia desenvolve para a cidade. Tudo estava se encaminhando muito bem. Ensaios a todo vapor e estréia já sendo produzida. A notícia do covid já visitava nossas cabeças. Itália, Espanha com números crescendo, mas seguíamos com esperança que isso não chegasse por aqui com intensidade.
Foram aparecendo os primeiros casos em Portugal e seguíamos observando e ensaiando. O primeiro caso em Braga, já o medo beirava cada um. Até que chegou o limite e o decreto de estado de emergência. Tudo parava. Sem sabermos o que poderia acontecer, nos isolamos em casa em torno de 2 meses.
Sessenta longos dias onde graças a internet, puderam se realizar movimentos de confraternização e compartilhamento artístico e de afeto. A CTB disponibilizou todo o seu acervo de peças on line e também se envolveu na programação do festival de varandas que aconteceu em todo Portugal. Rui Madeira seguia o seu confinamento revendo como toda aquela estrutura, na qual estava pronta para estréia, voltaria após esses dois meses de pausa.
Como colocaríamos todas essas pessoas em um palco. Como falaríamos de uma tragédia grega depois de uma tragédia pandêmica. Tudo isso gerou novas formas de leituras e até de estéticas. Coisas antes criadas que agora já não faziam mais sentido.
Em maio, quando os ensaios retornaram, todo um protocolo de segurança era obrigado a seguir para estarmos seguros e seguirmos com as criações. Máscaras, quantidades de pessoas e de tempo na sala, distanciamento, piso e objetos desinfetados. Assim começávamos nossa vida artística presencial pós pandemia. Demorou alguns dias até todo mundo relaxar, até a primeira semana passar e entendemos que se ninguém desenvolvesse um sintoma, estaríamos “seguros” para continuar juntos nesse retorno. Rui resolveu absorver todo o procedimento de segurança e introduzir ela no sentido da obra. Mudaram as relações entre os personagens, mudaram a estética, os sons e tudo o que já estava feito antes, tudo menos o texto.
A CTB - Companhia de Teatro de Braga segue os ensaios de As Troianas após o isolamento social em decorrência da pandemia. As novas regras de trabalho incluem atores usando máscaras, viseiras, álcool gel e distanciamento de 2 metros.
E assim seguimos, ensaiando na sala, distantes um dos outros, com máscaras, viseiras e muito álcool gel. Felizes por estarmos próximos e juntas com o teatro presencial. Nesse exato momento estamos aguardamos a data da estreia, que possivelmente será na segunda quinzena de julho, se tudo ocorrer como vem sendo mostrado os números de casos no pais.
Dormimos e acordamos com essa pergunta, ficamos acompanhando os dados de desenvolvimento do vírus e de como as normas para os teatros vem sendo divulgadas.
Que momento raro estamos passando. Mudanças, perdas, ganhos, cuidados, estratégias, observações e novos olhares que nascem dessa tragédia. Que a arte siga em uma curva exponencial de bons gerúndios em nossas vidas. Que nesse momento tão específico que estamos passando, ela nos conforte, nos inspire e crie pontes de lucidez.
Axé, evoé e ziriguidum
Grasiela atua como arte educadora em diversos projetos, dentre os quais destaca-se o Lê Pra Mim? que teve apresentações na Favela da Maré - RJ
Grasiela Müller é atriz, musicista e arte educadora e tem como pesquisa a criação artística através das linguagens animadas cênicas e sonoras. Licenciada em Música pelo IPA Porto Alegre em 2008, foi professora de música do projeto "Descentralização da Cultura" em Porto Alegre por três anos. Participou do projeto "Orquestra de Brinquedo" como musicista e também é performer musical em trens, metrô e ruas tocando seu inseparável acordeon. Foi convidada para tocar a trilha criada por Tim Rescala para o documentário "Lucia Coelho - Sempre Navegando" e teve uma faixa musical inédita no documentário "Abre Alas" da TV Futura. Participou do NAP - Núcleo Aberto de Palhaços com treinamentos cômicos, integrou o grupo Médicos do Sorriso atuando em hospitais da rede pública e particular da cidade de Caxias do Sul - RS. Fundou a companhia Trompim Teatro (2008 até 2013) com o apoio do Prêmio Carequinha Funarte e com o coletivo criou diversas performances e espetáculos dentre os quais destaca-se "Cinta-liga/Desliga", onde o universo feminino era abordado através da linguagem palhaça. Também fez parte do coletivo Catadoras de Arte e assim realizaram o espetáculo de bonecos "Elas se Viram", com o apoio do fundo Iberescena. Como atriz e musicista destacam-se alguns trabalhos como: "O Jardim Secreto", "Coralina e Adelia Prado - Receita de poesia em um Dedo de Prosa", "A Lenda do Vale da Lua", "História de um Barquinho", "Bicho Esquisito" e "As Aventuras do Menino Iogue" pelo o qual venceu o Prêmio CBTIJ de Teatro para Crianças e Jovens na categoria de Melhor Atriz Coadjuvante. Atualmente Grasiela reside em Braga/Portugal onde integra a CTB - Companhia de Teatro de Braga.
Comments